Nas novelas mexicanas de antigamente (ou nem tão antigamente assim), a vilã tinha cara de vilã, pinta de vilã, roupa de vilã — eventualmente, até tapa-olho de vilã. Bastava que entrasse em cena e sabia-se que boa bisca ela não era. Tudo — cabelo, tom de voz, adereços, maquiagem — conspirava para que não pairasse dúvida sobre sua abominável índole. Era um recurso dramatúrgico, impedindo que, ao coração do telespectador, ocorresse a ideia de balançar entre a mocinha (boa) e a vilã (péssima).
Pois mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora entre é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho). Entre uma e outra, só o Centrão — pendendo para o lado vencedor, claro.
Na América Latina, a Venezuela de Maduro, a Nicarágua de Ortega e a Cuba de Díaz-Canel são apenas “de esquerda”. Mas Nayib Bukele, em El Salvador, e Javier Milei, na Argentina, vão direto para a extrema direita, sem escalas — isso até o adjetivo “extrema” perder o vigor, e o prefixo “ultra” ser acionado.
Foi-se o tempo em que fobia era um medo exagerado (como em “claustrofobia”) ou uma neurose de angústia. Hoje não é preciso entrar em pânico diante de alguém com sobrepeso. Basta considerar esteticamente desagradável um corpo obeso para ser diagnosticado como gordofóbico. Tampouco é necessário negar a alguém o direito de assumir nova identidade e nome social e se perceber como pertencente a um gênero distinto daquele assignado no nascimento. Acreditar em sexo biológico e que homens levem vantagem sobre mulheres nas competições esportivas (mesmo após transição de gênero e terapias hormonais) transforma qualquer um em transfóbico.
Genocídio é, em estado de dicionário, o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” (como nos casos armênio, ruandês e bósnio). Entretanto o termo tem sido usado de forma corriqueira para caracterizar ações policiais de combate ao crime organizado em áreas onde a população é de maioria preta ou parda — ou para a calamitosa gestão da pandemia de Covid-19, no governo Bolsonaro.
Não faltam tentativas de banalizar o Holocausto — perseguição, segregação, exclusão, expropriação, tortura e extermínio de 6 milhões de judeus — com a extensão do termo à guerra de Israel contra o grupo terrorista Hamas, em Gaza.
E no Brasil existem agora três classes: os pobres, a classe média e os milionários (ou bilionários, como prefere o presidente Lula). Ser rico ou muito rico não soa ofensivo o bastante.
A hipérbole acabará por esvaziar certas palavras, tirar-lhes a potência. Parafraseando Ariano Suassuna — sobre como se referir a Beethoven depois de a palavra “genial” ter sido gasta com Ximbinha —, se todo mundo de quem você não gosta é fascista (ou comunista), que nome caberá a Eduardo Bolsonaro, Jones Manoel, Breno Altman, Nikolas Ferreira?
De tanto gritarem “É o lobo, é o lobo!” a cada vira-lata que aparece, ninguém dará a mínima se (ou quando) o Lobo Mau — o de verdade — der as caras. Mesmo que venha de dentes à mostra, garras afiadas e tapa-olho combinando com a cortina.
Eduardo Affonso, cronista
Fonte: https://oglobo.globo.com/