O Brasil teve ontem à tarde uma cena de civilidade. Houve outras, desde que essa tragédia atingiu os gaúchos. Numa reunião curta, objetiva, respeitosa, o presidente Lula ofereceu ao governador Eduardo Leite ajuda concreta. O ministro Fernando Haddad explicou que os juros serão perdoados na suspensão do pagamento da dívida por três anos. Estavam presentes o presidente do Senado e o vice-presidente do STF. O presidente da Câmara chegou no final, voltando de uma viagem. Tudo era republicano e seguia o rito de uma federação sendo solidária a um ente federado que enfrenta grande sofrimento.
— Além da medida provisória da semana passada, R$ 12 bilhões, mais a suspensão do pagamento da dívida de R$ 11 bilhões, ao final dos 36 meses, o juro sobre o estoque de todo o período estará sendo perdoado, o que é superior à soma das parcelas dos 36 meses — disse Haddad.
O ministro deixou claro que há ações em elaboração em favor do estado. Ontem mesmo, novas propostas foram preparadas em reunião ministerial.
— Queria que o senhor colocasse essa medida no rol das muitas que serão anunciadas nesse esforço comum em benefício da população do seu estado.
Antes que as águas dos rios subissem e o céu desabasse sobre o Rio Grande do Sul, o governador já vinha pedindo para renegociar a dívida. Argumentava que havia feito um ajuste fiscal importante, mas os sucessivos problemas climáticos, secas e enchentes, dificultaram a retomada da economia. Há ainda um complicador: o perfil demográfico do Rio Grande do Sul. O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves explica:
— O Rio Grande do Sul tem uma estrutura etária mais envelhecida do que a do Brasil. E Porto Alegre tem uma estrutura etária mais envelhecida do que a do Rio Grande do Sul.
No Brasil, 15,8% da população tem 60 anos ou mais, no Rio Grande do Sul são 20%, e em Porto Alegre, 21,9%. No Brasil, 19,5% da população têm de zero a 14 anos, em Porto Alegre são 16%. Isso não explica a crise, ele alertou, mas o fato é que a economia se beneficia de uma população mais jovem.
E a economia enfrenta uma devastação. Segundo a Federação das Indústrias, os 477 municípios afetados, 90% do total do Estado, representam 94,3% de toda a atividade econômica estadual. A Federação das Cooperativas Agropecuárias acha que na safra de inverno o trigo será também atingido pela dificuldade de plantar.
A cena cinematográfica, mais uma, é de perder o fôlego. No Vale do Taquari, uma mãe em cima de um telhado estende seu filho, um bebê de cinco meses, para ser resgatado pelo Exército. O militar de dentro do helicóptero, com destreza, pega a criança e a abraça, levando para dentro da aeronave. É Anthony Miguel, filho de Natasha Becker. Ela ficou três dias agarrada ao bebê no telhado da casa inundada, junto com toda a família. Sem água, sem comida, na chuva, no frio. Não entregava o bebê para ninguém com medo de que ele caísse na água. Em relato emocionante feito a Andréia Sadi, no Estúdio i, dez dias depois do resgate, Natasha contou:
— Quando eu ouvi que o helicóptero chegou, eu nem sei como, porque não tinha como ficar em pé no telhado, eu pulei por cima de todo mundo e coloquei o bebê fora do telhado e logo o socorrista desceu e foi bem ágil. Já foi me explicando como é que tinha que passar pelas tesouras do telhado, onde é que eu tinha que pisar e eu entreguei ao socorrista para ele entregar para o rapaz que estava ali dentro do helicóptero fazendo o resgate.
Todos os adultos que estavam nesse telhado foram resgatados e a casa desabou depois de todos salvos.
Lula garantiu a Eduardo Leite que a ajuda continuará:
— Só para você saber que não vamos descansar enquanto o Rio Grande do Sul não estiver 100% de pé, sabe? Vendendo e emprestando orgulho do povo gaúcho para o Brasil inteiro.
Em outro momento, o presidente afirmou:
—Já fiquei em abrigo, minha casa já encheu d’água, eu sei o que as pessoas passam sem poder sequer trocar de roupa.
O Brasil acompanha o drama do Rio Grande do Sul, chorando ou respirando de alívio a cada nova notícia, numa onda de solidariedade e apoio, que tem superado as maquinações de negacionistas e produtores de fake news. O diálogo civilizado entre os governos federal e estadual, como na reunião de ontem, resgata o país cheio de cicatrizes do conflito federativo, estimulado pelo governo anterior, quando o país enterrava os mortos da Covid.
Míriam Leitão, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/