É ao mesmo tempo profunda, robusta e assustadora a investigação que resultou no relatório da Polícia Federal (PF) descrevendo, ao longo de 884 páginas, a trama urdida nos bastidores do governo Jair Bolsonaro para dar um golpe de Estado e impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Baseado não só em depoimentos, mas sobretudo em cruzamentos de informações colhidas ou recuperadas de celulares, computadores e anotações dos acusados, o inquérito traz um farto e consistente material à disposição da Procuradoria-Geral da República para apresentar denúncia.
A PF pediu o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros 36 envolvidos, entre eles o general Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa, da Casa Civil e candidato a vice na chapa de Bolsonaro em 2022), o general da reserva Augusto Heleno (ex-chefe do GSI), o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha) e o general da reserva Mário Fernandes (ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência, preso na semana passada).
No documento, tornado público pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a PF narra pela primeira vez em detalhes aterradores a participação de Bolsonaro na trama. Afirma haver provas inequívocas de que ele “planejou, atuou e teve domínio de forma direta e efetiva” no plano de golpe. Descreve situações e apresenta evidências para corroborar que Bolsonaro sabia e participou de tudo. Uma delas é a reunião convocada por ele em dezembro de 2022 com os comandantes militares para apresentar-lhes a minuta de um decreto que abriria espaço ao golpe de Estado e pedir-lhes apoio para a empreitada. Apenas Garnier assentiu. O comandante do Exército, general Freire Gomes, e o da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior, rechaçaram firmemente o golpe— e voltariam a rechaçar. No entender da PF, a intentona só não vingou porque chefes militares resistiram.
Embora muitas das informações já tivessem vindo a público, como o plano estarrecedor para matar Lula, o vice Geraldo Alckmin e Moraes, o relatório traz fatos surpreendentes. É o caso de uma agenda apreendida na casa do general Augusto Heleno. em que ele sugere estratégias para não cumprir decisões judiciais e impedir a PF de executar mandados considerados “ilegais”, ainda que emitidos por juízes. Uma apresentação de 2021 já trazia planos para tirar Bolsonaro do país em caso de fracasso. Há ainda mensagens do então diretor da Abin, Alexandre Ramagem, insuflando Bolsonaro a aderir à ruptura ao longo de 2022. Outra evidência do alcance do golpismo é o documento “Operação 142”, encontrado com um assessor de Braga Netto, que traçava o roteiro do golpe com base numa interpretação estapafúrdia do artigo 142 da Constituição. A ação seria seguida de pronunciamento em cadeia nacional, “anulação de atos arbitrários do STF”, “anulação das eleições”, “substituição de todo o TSE” e outras barbaridades.
A PGR deve agora se debruçar com afinco sobre o relatório para apresentar as denúncias que julgar pertinentes ou pedir mais investigações. É fundamental unir agilidade e correção no trabalho. Os fatos descritos pela PF são de extrema gravidade. Merecem resposta firme e, ao mesmo tempo, justa. Não só para que não se repitam, mas também para o país recobrar um clima de normalidade democrática.
Editorial do Jornal O Globo de 28.11.2024
Fonte: https://oglobo.globo.com/